Como integrante do grupo A Arte de Caminhar, visitei Ilha de Maré em Salvador-BA. A ideia era de caminharmos e retomarmos o contato com a natureza, nos relacionando com o nosso entorno e observando-o com mais paciência e calma, interagindo com o espaço. Queríamos experimentar novamente a vida sem fadiga, o estresse e o cansaço, causados pela dinâmica citadina e a falta de tempo que assola a contemporaneidade, mantendo seus cidadãos cada vez mais ocupados.
A atualidade trouxe uma quebra da relação da pessoa não apenas com o espaço, mas também consigo mesma, e a ideia de caminhar veio como proposta de reatar esses laços que foram espatifados por diversos elementos. Um deles são os meios de mobilidade urbana, que retirou das pessoas o contato com os seus pares e com o espaço, sendo sempre pensados para poupar tempo e chegar mais rápido aonde quer que seja.
Sei como é se sentir sem tempo: tenho que chegar nos destinos o mais rápido possível, caso contrário, sofro sanções ou me sinto mal, como se estivesse cometendo um erro ao perder tanto tempo, num processo duplo de fiscalização. Eis um resumo da vida atual para a maior parcela da sociedade: acordar, pegar um transporte, sair do transporte, chegar num local para uma atividade, voltar a entrar num transporte, sair mais uma vez para outra atividade, voltar para casa, dormir. Repetitivamente é assim, dia após dia.
Diante disso, durante as discussões que tivemos, a ideia de caminhar foi me apetecendo cada vez mais. Já faço caminhadas e corridas para me manter saudável, mas repensar essas atividades, ressignificando e atribuindo outras finalidades, me fez refletir. Pensando no caminhar como mobilidade me fez analisar a rotina: ignoramos os lugares por onde passamos a todo instante, já que são transformados em meros locais de passagem. Isso porque o nosso objetivo não se encontra ali onde estamos passando. Além disso, a sensação é de que enquanto estamos passando, entramos num estado de suspensão, sem ser ninguém, nem nada. Simples transeuntes que aparentemente não tem nada a fazer naquele lugar que só serve para passar.
Isso é um equívoco já que cada lugar pode abrigar inúmeras experiências, instigando nossa sensibilidade, que tem sido perdida. Não sentimos, ouvimos, vemos, cheiramos ou escutamos. Estamos imersos em atividades, ocupados demais para sentir algo, em pensamento e preocupações, vivendo sempre no futuro ou remoendo o passado, nos tornando ansiosos, deprimidos, quiçá até mesmo melancólicos. Nós nos tornamos uma sociedade doente que não vive, que não é, sempre produzindo, sempre estando.
Com reflexões desse contexto, passei a repensar minha maneira de viver e uma mudança significativa que notei em meu dia a dia foi à consciência espacial na qual ganhei que começou nas corridas que faço: ao invés de tentar simplesmente realizar um percurso em um determinado tempo, comecei a analisar as pessoas, suas relações, os animais, os objetos, as casas. Tudo o que há e que me chame a atenção. Isso foi crescendo de tal maneira que atualmente me sinto capaz de perceber inclusive as mudanças que ocorrem no espaço onde estou localizado. A empatia também cresceu, melhorando não apenas a consciência espacial, mas também a relação com as pessoas.
Pretendo falar mais sobre os efeitos sentidos em minha vida no final do relato. Por hora, desejo me alongar sobre o que virá: fiz três visitas com o grupo, sendo que a primeira delas, apesar de ser técnica, considero especialmente importante. Foi nela que comecei a fazer as assimilações da teoria, as aplicações práticas, e ter iniciado um processo de sensibilização muito forte.
Tive inúmeras ideias para produzir em relação às caminhadas, mas as que mais me cativaram foram três: construir um relato sobre as sensações e experimentações vividas na ilha; apontar as diferenças existentes entre a população existente lá e a da parte continental; e destacar problemas sociais e dificuldades encaradas pela comunidade de Ilha de Maré.
Primeiro dia – 04 de maio.
Nesse dia, uma equipe diminuta do grupo foi selecionada para realizar uma visita técnica, reconhecer o trajeto e os procedimentos que seriam adotados no dia da viagem.
Nos encontramos no campus da UFBA, em Ondina, e não nos demoramos muito: dividimos os lanches e entramos num carro. Não conversei muito com as colegas pois não as conhecia, enquanto elas conversavam entre si sobre assuntos que considerei um tanto formais. Logo peguei meu celular pensando num texto que deveria ler para a aula que teria na noite daquele dia.
Ao longo do percurso a paisagem foi mudando. Quanto mais nos afastávamos do centro, mais a sensação de desordem e falta de organização aumentava. Os prédios organizados e a paisagem harmoniosa iam sendo substituídas por favelas, pistas menos uniformizadas, vegetação e barrancos ao redor. Já havia observado isso em Salvador como um vestígio da desigualdade que existe. Então fiz a viagem dessa maneira: ignorando as colegas dentro do carro, a paisagem do lado de fora e preocupado com o texto que estava lendo no celular.
Assim que chegamos na Base Naval de Aratu, a mudança do ambiente era sensível. Apesar de não ter sido suficiente para me fazer estupefato, a nova paisagem havia me trazido para mais próximo do aqui e do agora.
Ter contato com a areia, com a brisa suave vinda daquele céu tão azul que trazia o cheiro da maresia e com a água ainda não havia sido suficiente para me arrancar das preocupações que tenho comumente.
Com alguns procedimentos estabelecidos para o dia da primeira visita oficial, tomamos um barco e nos direcionamos para Praia Grande em Ilha de Maré. Comecei a lembrar das discussões que tivemos em sala. Uma boa metáfora para essa experimentação é pensar naquela travessia como um processo de sensibilização, que aumentava proporcionalmente ao avanço do barco.
Se ao entrar no barco eu já estava mais conectado com a paisagem ao meu redor, nos poucos minutos que se passaram após isso, meu nível de absorção de mundo e de receptividade de experiências sensoriais já estavam elevadíssimos. Eu me sentia mais leve e feliz, sem preocupações nem estresses. O grupo, timidamente, já começava a conversar sobre trivialidades e até mesmo ria.
Eu sentia o deslizar do barco sobre a água que criava um balanço bastante agradável, quase como um ato de ninar,e ondinhas durante sua passagem. Isso criava um efeito visual admirável com as ondulações recebendo os raios de sol, fazendo a superfície do mar brilhar. O ar estava úmido e salobro que, ao tocar a pele, lembrava uma espécie de afago que envolvia todo o corpo, como um abraço caloroso. Olhando para o horizonte, encontrei o céu, que estava repleto de nuvens gigantescas e tão baixas que faziam parecer que ele estava caindo.
O conjunto de todas essas coisas traziam uma sensação de imensidão e completude, além de uma paz interior muito intensa, como se tudo no mundo estivesse no lugar certo, do jeito que tem que ser. Ao olhar para trás, percebi que Salvador se apequenava e que para frente, o engrandecimento de Ilha de Maré era mais constante, me senti feliz. Ainda observando a aproximação da ilha percebi que eu estava no meio de um processo de transformação. Estava caminhando para o presente e para dentro de mim mesmo.
Logo, aquela primeira travessia teve uma aura mística para mim, com uma carga apelativa muito forte, especialmente por ser uma experiência não tão desgastada. As sensações eram pouco exploradas e o aumento da sensibilização me fez sentir a paisagem, que tinha uma magnificência e uma beleza tão grande, que me remeteu diretamente ao meu interior, me fazendo questionar sobre minha própria vida. Questões como “o que eu quero para minha vida; estou vivendo ou sobrevivendo; sou feliz diariamente?” me invadiram a mente. Via ao longe as casas dos moradores, pequenininhas, coloridas e organizadas de seu modo peculiar. Pensei no quanto aqueles moradores teriam sorte de viver ali.
Repentinamente me dei conta de que eu havia esquecido completamente de meu celular. Isso me fez lembrar de como as pessoas estão tão acostumadas com esse tipo de aparelho, dificultando até mesmo a sociabilidade. Está cada vez mais difícil o relacionamento interpessoal, e ele é um dos fatores. Esse esquecimento, acredito agora, me fez estar mais próximo das pessoas que compunham o grupo, de modo que facilitou nossa comunicação.
Enquanto atracávamos, uma nuvenzinha de chuva veio fazer nossa recepção. Inicialmente achei ruim, mas logo percebi o quanto para aquele trabalho de experimentação de sensações isso poderia ser bom. O tocar da água da chuva na pele, sem convite. Havia esquecido como era a sensação de aceitar tomar um banho de chuva. Fomos andando através do cais, e fui observando o pontilhar da chuva caindo no mar enquanto sentia a água em meu corpo, resistente a ela. Mais para frente ao sentir o cheiro de terra molhada, eu já estava encharcado e finalmente comecei a aceitar o toque daqueles minialfinetes e a lama sob os pés. Eu definitivamente já não era mais a mesma pessoa do início daquela manhã.
Fizemos uma curta caminhada até uma das escolas municipais da ilha. A chuva logo parou. Durante o percurso, fui me atendo aos cheiros e detalhes da ilha. O chão era quadriculado, sem asfalto; o barro e a lama competiam para decidir quem seria maioria sobre a grama; caranguejos, gatos, cachorros, galinhas, pássaros e cavalos passeavam tranquilamente ao nosso redor e em todos os locais, acostumados com a presença humana.
Havia barcos parados, estáticos na areia da praia ou ancorados no mar, flutuando com o ir e vir da maré e dos ventos. As árvores dançavam, balançando suas copas e exibiam suas cores. Tudo estava tão desordenadamente ordenado, que tive a sensação de que se alguém tentasse arrumar aquele lugar, a identidade se perderia.
Ao entrarmos na escola, as surpresas não cessaram, a começar pelo próprio ambiente da escola: uma área ampla com poucas construções, nitidamente pensado para poupar espaço. Ele era aproveitado de tal maneira que permitisse permitia aos alunos se exercitarem naquela vasta grama bem cuidada. As salas também não eram retangulares nem quadriculares, se organizavam em colmeias. Os muros eram baixos e não gradeados, mesmo sem a aparente ausência de uma fiscalização da ordem pública. A ideia de funcionamento e respeito às convenções parecia dominar o lugar.
Nos reunimos com a direção da escola e professores para ajustar elementos e expor as ideias quanto ao motivo de levar aqueles alunos para caminhar conosco. O diálogo transcorreu de forma fluida devido à vontade de contribuir de ambos os lados. Neste ínterim em que os parâmetros iam sendo ajustados, o intervalo começou.
Decidi que queria me aproximar mais dos alunos, e então sai da sala logo no começo do intervalo para poder observar seu modo de agir, em busca de diferenças e similaridades. As crianças brincavam e interagiam diretamente com o espaço, seus corpos em contato direto com a natureza ao redor, correndo, jogando bola, conversando e divididas em grupinhos não tão estáticos. A maioria parecia se falar e interagir com os diversos grupos.
Além disso, eram suficientemente desapegados de smartphones, tablets e celulares. Isso fazia com que sua interação se desse de forma intensa. Aquelas crianças jogando bola, descalças na grama, ou conversando entre si, rindo e se divertindo umas com as outras, foi algo que percebi e não consigo mais ver sem me encantar.
Contudo, algo não tão agradável logo saltou aos olhos. Em menos de vinte minutos de intervalo, observei um tratamento hostil por alguns dos alunos, independente do gênero. Passei a observar esse detalhe com mais atenção e notei que esse tratamento enérgico e hostil era comum entre alguns deles. Além disso, vi três brigas se iniciando entre eles. Isso me fez perguntar sobre a educação daquelas crianças e sobre os exemplos que elas tinham dos mais velhos.
Sei que observar pessoas mais velhas faz parte do processo de educação de uma criança. Acredito que o homem é fruto do meio em que vive. Diante disso, passei a observar o modo de agir dos mais velhos também, para tentar justificar a ação daquelas crianças.
Observando os educadores da escola, notei que aparentemente são pessoas bem instruídas. Ao menos, o conteúdo das lousas indicava isso. Contudo, apenas isso não era suficiente para analisar, então decidi mudar o foco para o modo com eles tratavam as crianças. Não havia nada de violento ou exagerado no modo de falar, com equilíbrio e proporcionalidade. A única coisa que me incomodou nesse aspecto foi o modo impositivo como eles se dirigiam aos alunos.
Acredito que imperatividade não é uma qualidade que combina com professores, logo, aquele papel de autoridade inquestionável observado não é nada saudável. Ninguém gosta de ser mandado o tempo todo ou de receber ordens, especialmente crianças, devido ao seu estágio de desenvolvimento cognitivo. Isso pode acabar interferindo no processo da formação adulta de uma pessoa. Talvez, em conjunto com outros fatores, essa imperatividade possa contribuir para um temperamento hostil das crianças. Ainda há outro fator: se elas não puderem expressar suas insatisfações, acabarão se tornando ressentidas, podendo ter efeitos muito piores do que temperamento agressivo.
Assim sendo, acredito que não basta que esteja escrito no quadro a história da revolução industrial ou a formação dos tecidos celulares, mas que a escola seja uma espécie de miniatura do mundo, de modo que elas aprendam a interagir em sociedade. Ensinar a criança a se tornar uma cidadã conhecedora e respeitadora das convenções sociais. Isso não é feito de forma impositiva e sim negociável, com diálogos e convencimentos, num processo de construção e modificação do espaço diário.
Ao fim do intervalo, nós nos direcionamos para uma sala onde teríamos nosso primeiro contato verbal com os alunos: conheceríamos aqueles que provavelmente fariam parte de nosso grupo de caminhada. A sala era redonda, de modo que pude observar cada aluno facilmente. Eles tinham feições que mostravam uma mistura de ansiedade, curiosidade e vergonha. Alguns deles, descaso.
Após o término de nossas apresentações, Karla discorreu sobre a finalidade da caminhada. Infelizmente para nós, muitos alunos foram desistindo de estar naquele grupo de modo que ao fim de sua fala apenas uns treze ainda estavam dispostos. O bom foi que quem continuou estava aparentemente bem animado com a proposta, e assim a experiência seria mais realista e vivenciada como propúnhamos já que não se sentiam obrigados.
Com tudo resolvido, caminhamos de volta ao barco. Comi meu lanche enquanto andava com certa dificuldade. Voltamos conversando, de modo que chegava até mesmo a sentir que estava entre amigos, e não simplesmente colegas. Percebi que ainda estava com a sensibilidade aumentada, mas não mais para a natureza e para a paisagem, e sim para as pessoas. Então passei a observar aspectos da vivência e conforto daquele local.
Notei que realmente não havia policiamento na região. Havia conversado com um professor na escola que afirmou a existência de milícias. Não pude notar isso durante a caminhada, mas é se desconfiar a existência delas já que as pessoas pareciam não se preocupar muito com crimes. Passeávamos exibindo câmeras, celulares e mochilas, mas não fomos importunados para além dos olhares curiosos que eram lançados em nossa direção.
Além disso, os adultos aparentemente se tratavam com respeito, de modo que suspeitei que a ação das crianças pudesse ser oriunda da energia que acompanha a idade. Finalmente havíamos chegado ao barco e logo rumamos de volta a Salvador.
Nessa viagem tive a oportunidade de conversar com um senhor que se apresentou como Colônia. Ele era um “filho da ilha”, termo utilizado para denominar pessoas que nasceram e cresceram nela. Colônia me contava algumas características de lá, como a alimentação das pessoas que, devido à dificuldade de travessia de alimentos, muitos sobreviviam da agricultura de subsistência. Ao que parecia, plantar em roças, pescar no mar e ir em busca de caça não era incomum. Enquanto ele falava eu tentava lembrar da quantidade de minimercados que havia visto, e não lembro de ter mais de três.
Colônia também me contou sobre um abandono que a ilha tem por parte da prefeitura que não presta assistência, especialmente, no tocante a segurança e saúde. Além do mais, ela tinha recebido energia elétrica há apenas 10 anos: 2008, se ele estiver correto. Apesar disso tudo, era mais confortável morar lá: não havia um ritmo tão acelerado quanto no continente, sendo melhor para educar suas crianças e possuindo uma qualidade de vida melhor.
Descobri durante a conversa, que Colônia era 1° Sargento da reserva da Polícia Militar, e que assim como ele muitos moradores de lá vinham para o continente trabalhar e voltavam para a Ilha todos os dias. Começamos a discutir sobre história, política e segurança pública em um determinado momento, e assim fomos até chegarmos no cais. Estávamos de volta à cidade.
Segundo dia – 18 de maio
Finalmente havia chegado o dia da segunda visita. O melhor: da visita propriamente dita com todo o grupo. Éramos dezenove pessoas no campus, aguardando a chegada do restante do grupo.
Aproveitei esse tempo para ir comer um café da manhã. Atravessei parte do campus a pé, tentando conduzir o processo de sensibilização. Tentei observar as copas de árvores e sentir os raios de sol que passavam por entre as folhas; ou o vento frio que sopra pela manhã e a ausência das pessoas. Notei uma grande diferença entre o turno da tarde e noite com o da manhã, que está muito mais calmo, silencioso e tranquilo. Imaginei que ele fosse se tornando mais agitado ao longo do dia, à medida que as pessoas vão despertando. Tentei saborear meu café enquanto voltava para perto do grupo, que agora terminava de se organizar.
Karla chegou com os lanches e umas sacolinhas. Nossa saída atrasou um pouco devido à divisão desses materiais, mas nada muito alongado. Eu queria ajudar, mas ela estava abafada. Assim sendo, sugeri que centralizássemos os itens e nos afastássemos para que ela pudesse pensar com clareza. Suspeitei de que meus colegas estiveram alheios a esses problemas de início das atividades. Entretanto, isso não me surpreende: o comum é estarmos imersos em nossos problemas e devaneios, sem muita empatia e consciência de grupo. Enquanto escrevo, tendo certeza que minha sensibilização forçada com o ambiente falhou, me pergunto se eu não estava mais sensível às pessoas dessa vez.
Karla logo terminou a distribuição dos itens: recebemos uma garrafinha de água, uma sacolinha, um hamburgão, um pacote de biscoitos, uma barra de cereal, uma banana, uma maçã e uma caixinha de suco. Com tudo em condições, o grupo rumou para o micro-ônibus. Vê-los andando em fila, me fez sentir vontade de começar a tirar fotos. Foi assim que dei início ao meu trabalho de fotografo sem experiência, habilidades e até mesmo equipamentos apropriados!
A viagem de ida do grupo todo não foi muito diferente do reduzido, mas dessa vez as pessoas estavam aproximadas por afinidade, de modo que algumas duplas ou trios conversavam entre si, sem fazer muito barulho ou algazarra. Inclusive eu, para evitar preocupações, fui conversando com uma amiga que fiz na primeira ida: queria apenas sentir ao máximo tudo o que a viagem pudesse proporcionar.
Quando chegamos a Base Naval e descemos do micro-ônibus, eu de alguma forma me afastei do grupo, e ao olhar para o restante à minha frente, percebi que nossa presença era discrepante ali. Não havia harmonia com a paisagem, sendo facilmente observável que não éramos dali, com nossas câmeras, mochilas, tênis e modo de andar e olhar ao redor.
Via também as pessoas ao redor nos olhando com curiosidade. Vi um dos alunos adultos da escola trabalhando como marítimo, o que me deixou triste, pois sabia que tinha aula nesse dia. O grupo seguiu para embarque tirando inúmeras fotos da paisagem.
Era engraçado observa-los tirando todas aquelas fotos. Me perguntava como estaria o processo de sensibilização deles. Se estavam realmente sentindo o ambiente e a paisagem, se encantando como eu havia me encantado ou se estavam mais preocupados com a fotografia perfeita. A essa altura, eu já havia desistido de tentar me sensibilizar: estava preocupado com a segurança do grupo e já não me encantava mais da mesma maneira, talvez pelo fato de já ser a segunda vez que fazia a mesma travessia.
Notei que o semblante da maioria estava diferente agora. Pareciam mais relaxados e entusiasmados do que no início da manhã, então acredito que tiveram uma experiência parecida com a minha da primeira viagem. Contudo, eu não estava conseguindo realmente me conectar com a paisagem. Imaginava tanta coisa que podia acontecer e dar errado, já que afinal de contas,19 pessoas significavam que existiam 19 possibilidades de acidentes.
Tentei me desligar de minhas preocupações e observar meus colegas dentro do barco. Havia apenas uma delas falando com a outra, que a ouvia com atenção, enquanto o restante estava em silêncio, com feições observadoras e calmas. Karla começou a organizar alguns materiais com outros colegas e eu decidi ajudar para me desligar de meus pensamentos. Logo chegamos na Ilha.
A idéia, era chegarmos na escola e levarmos os alunos conosco para a caminhada no horário marcado. Contudo, já estávamos atrasados e nos atrasamos ainda mais pois, no trajeto muitos colegas paravam para tirar fotos. Assim, eu fui à retaguarda do grupo, me certificando de que não havia ficado ninguém para trás. Hoje, enquanto escrevo, acredito que não pude me conectar com o ambiente por causa de minha preocupação latente. Talvez devido à atividade que iriamos executar naquele dia: trilha no meio da mata, com muita lama e terreno escorregadio.
Assim que chegamos vi os alunos no intervalo, com mais brincadeiras que exigiam esforço físico. Estava ansioso para ver a interação entre o pessoal daquela escola com o do nosso grupo. Nos reunimos com a diretoria para separar os grupos e decidir quais trilhas iríamos tomar, porém, percebemos que nada havia sido decidido ainda por parte da escola. Depois de muito debate infrutífero, Karla decidiu que nos dividiríamos em dois grupos: um iria por dentro da mata fechada, com morros e ladeiras para subir e descer, com as trilhas cobertas de lama, e o outro por dentro também, mas por uma trilha menos acidentada.
Comecei a interação com o pessoal da escola ainda dentro dela e percebi que eles também estavam ansiosos para interagir conosco. Havia um senso de competição entre eles que avaliei com humor. Ficavam se comparando com nosso grupo a todo o tempo, em relação à resistência física e a facilidade que teriam com as trilhas na mata. Lembro que tentando interagir com eles, sugeri de jogarmos bola e um deles me provocou, dizendo que para jogar lá, a pessoa precisaria de dois pares de pulmão. Algumas conversas aconteceram, mas todas com o mesmo teor provocador, quebrando o gelo e criando uma certa harmonia no novo grupo.
Saímos da escola já divididos em grupos. Num ato de preocupação, antes de entrarmos na trilha atribui um número para cada um presente, de modo que todos deveriam saber onde estaria a pessoa de número anterior e a posterior. Isso facilitaria a própria contagem do pessoal e evitaria que alguém se perdesse ou passasse alguma dificuldade sozinha. Com todos os 23 presentes enumerados, entramos na trilha irregular.
Notei uma grande facilidade dos alunos em andar se desviando da lama, enquanto eu e meus colegas já atolávamos no começo. Logo na primeira atolada, decidi fazer a trilha descalço. Tirar a sandália foi ótimo: tive mais facilidade para andar.
Fiquei para trás mais uma vez, me certificando de que todos estariam bem. Fui acompanhado durante parte do trajeto por um professor de geografia da escola que ia explicando e mostrando curiosidades. Uma aluna me deu uma concha que encontrou para que guardasse como recordação. A partir daí, notei uma animação e um entusiasmo nas pessoas da escola em nos mostrar e ensinar coisas da ilha: acerca de plantas como samambaias e urtigas, sobre animais, pedras ou onde pisar e segurar. Contudo, em todo momento havia uma espécie de competição e comparação. Ou seja, ao mesmo tempo, em que estávamos analisando-as, sofríamos análises também.
O terreno começou a ficar mais difícil, de modo que íamos ficando cada vez mais para trás. Só nos uníamos quando o pessoal da frente se atrasava em algum terreno mais difícil. A primeira delas foi uma descida escorregadia, cheia de lama. As alunas da escola ao mesmo tempo que nos ajudavam, se divertiam com nossas tentativas. Enquanto isso, meus colegas passavam por situações difíceis, engraçadas e constrangedoras ao tentar não se sujar. No fim das contas o resultado era cômico: não apenas se sujavam, mas faziam isso mais do que o normal. Na tentativa de não se sujar, muitos acabavam caindo e se sujando ainda mais do que apenas o tênis ou perna.
Íamos todos conversando, rindo, observando o ambiente e fazendo gozações sobre as dificuldades do terreno que, afinal de contas, não eram tão difíceis assim. Assim, a caminhada foi acontecendo, fazendo com que nos uníssemos e estivéssemos mais próximos uns dos outros. Fui relaxando, percebendo que a trilha não apresentava tantos perigos, e que o pessoal também saberia se cuidar em caso de algum problema, então fui sentindo mais alívio e passei a estar mais presente no ambiente. Conversei com as pessoas que estiveram próximas a mim, me diverti e me relacionei com o ambiente no presente.
O interessante é que íamos compartilhando experiências, nos ajudando uns aos outros para passar pela trilha sem grandes dificuldades. Alguém sugeria algo sobre alguma adversidade e nossa passagem pela mata acabou sendo confortável. Passávamos lama na pele para evitar os mosquitos; dávamos o braço para ajudar aqueles que tinham dificuldade em determinada trilha; procurávamos caminhos alternativos para um que fosse intransponível para outro.
Ou seja, apesar da aparente apatia que reina sobre o meio social, a vontade de ajudar e a comoção eflui a depender da necessidade. Estar em um local que propiciou dificuldades e exigiu que estivéssemos com a atenção completamente voltada para o presente nos fez afixarmo-nos no agora. São relações sociais assim, empáticas, na qual considero que se perderam no cotidiano.
Ao longo da trilha fui observando a paisagem: casas de cupins, maribondos, formigas, plantações, espécies de plantas, lama, borboletas, limo, cogumelos, frutas. Era mais que apenas o “mato” que costumamos falar. Existe riqueza de variedade e cada elemento tem sua função. Lembrei das questões de equilibro ambiental e fiquei feliz por aquela região não ter uma presença humana muito marcante.
À medida que íamos nos aproximando das casas, vestígios da população iam surgindo: lixos como, plásticos, papéis, sacos, embalagens, carcaças de televisores, pneus e dentre outros, iam surgindo nos cantos da trilha. Foi dessa forma até chegarmos na comunidade.
Mais uma vez estávamos atrasados e novamente ficamos vislumbrados com a beleza do lugar. A mata deu lugar a praias lindíssimas, com canoinhas atracadas e um vasto mar, azul e calmo ao longo de toda a extensão de nossa vista. Íamos andando sentindo o chão, a areia e o vento, tendo uma belíssima paisagem para deleitar os olhos. Apesar de ser 12h, o sol estava ameno e tudo contribuía para uma sensação de conforto com o ambiente, que era ainda mais acentuado por sairmos daquela trilha, onde o os raios não incidiam diretamente sobre nós.
A sensação que tive foi de liberdade, e tudo estava claro. Um dos alunos da escola nos ofereceu um doce de banana, feito em uma localidade da ilha, que era bem diferente do que eu estava acostumado a comer. Era feito em barra, viçoso e apesar de não ter sabor caramelizado era doce, acredito que tinha cravo nele. Muito saboroso!
Voltamos ao barco e logo iniciamos a volta para o porto próximo a escola. Alguns colegas foram levar os alunos de volta à escola, outros ficaram no barco e eu, com mais outros, fomos tomar um banho de mar. Andamos bastante para conseguir chegar num local onde mergulhássemos o corpo por inteiro. O chão era lamacento e tinha coloração escura, mas dava uma sensação muito boa de se pisar. Ficamos lá, imersos, aproveitando a água salgada e a lama, boiando e olhamos para o céu enquanto éramos ninados pela maré mansa.
Nadamos de volta para o barco e, assim que o restante retornou, iniciou-se a viagem de retorno. Voltei em silêncio, com a mente vazia. Sem pensar em nada relevante, apenas em coisas aleatórias e observando a paisagem, descansando. Meus colegas pareciam estar no mesmo estado: alguns vieram dormindo e outros tão calados quanto eu, e poucos conversavam. Chegamos a Salvador e cada um seguiu seu caminho de volta para suas vidas.
Terceiro dia – 08 de junho
O último dia de caminhada começou como de costume, no encontro no campus para ir em direção à ilha. Como das outras vezes, as conversas aconteciam entre poucas pessoas, tímidas, mas ao longo do dia foram se tornando mais animadas.
Diferentemente da viagem anterior, eu estava muito preocupado com a aula que teria à noite, quando teria uma prova. Desse modo, quando chegamos no barco fiquei na parte inferior, sozinho. Lá havia um cheiro forte que demorei de me acostumar, além do barulho do motor que era ensurdecedor, de modo que nenhuma conversa ou ruído da parte superior me incomodava.
Dessa maneira fui a viagem de ida inteira, estudando sozinho para a prova. Uma colega desceu para tirar algumas fotos e notei como é curioso o fato de nossa atenção ser facilmente desviada quando outra pessoa está próxima. Ela não demorou, mas minha atenção já havia sido completamente minada. Assim fui no restante da travessia, tentando ler o texto, mas a mente vagava pelas diversas situações da vida.
Quando menos esperava já havíamos chegado, então subi rapidamente e logo rumamos em direção à escola. Tive a sensação de que chegamos muito mais rápido que das outra vezes. Dessa vez eu não observava as pessoas nem as coisas, apesar de à retaguarda. Fui apressando as pessoas para que chegássemos o quanto antes.
Na escola havia uma multidão reunida protestando pela omissão da prefeitura em garantir a segurança dos alunos em relação ao avanço do mar e às travessias que são feitas entre as diversas localidades de Ilha de Maré, e com o continente também. Ao que pareceu, existia uma barreira de contenção que foi engolida pelo mar, e atualmente, ele se encontra a menos de três metros de distância do muro em frente ao colégio.
A população havia se reunido e trancado a escola para impedir que as aulas acontecessem como protesto. A Polícia Militar foi acionada e reabriu a escola, aquém dos protestos da população. Considero válido o protesto daquelas pessoas, as condições de travessia realmente não são seguras; não existe um cais adequado para que as embarcações atraquem; no cais existente não há barreiras de contenção; o mar avança, oferecendo risco para quem ousar sair de casa; o chão é de barro em muitos locais que, quando chove, se torna lamacento e escorregadio. Enfim, problemas não faltaram para que aquela multidão se reunisse.
Enquanto entrávamos na escola fui observando as feições de inconformidade daquelas pessoas e lembrei de tudo o que eu havia vivenciado. A ilha tão bonita e acolhedora, com o mar calmo e em alguns pontos até mesmo cristalino, com tanta coisa harmonizada e com grande espaço para se viver, também tinha seus problemas.
Assim sendo, decidi deixar o restante do grupo resolvendo o que faltava para iniciar a caminhada e sai para entender de fato o que as pessoas estavam fazendo ali reunidas. Observei uma repórter falando para a câmera as informações que tinha recolhido durante a manhã. Ela falava sobre a população ser abandonada pela prefeitura de Salvador, que os representantes só apareciam na ilha em cada quatro anos, quando aconteciam as eleições. Relatava também sobre a falta de meios de locomoção na ilha, que acabavam acontecendo a pé, por bicicletas, ou animais. Poucas motos se viam lá, e os barcos não oferecem segurança suficiente para fazer desse um meio comum. Além ainda, sobre falta de policiamento e saúde, e ainda mais.
Ignorei o restante para tentar ouvir o que as pessoas falavam entre si. Não tive muito sucesso nesse momento, pois o clima já era de fim da mobilização, quando as pessoas já estão voltando para suas casas. Então decidi abordar algumas delas e fazer perguntas.
Parei um rapaz para lhe perguntar sobre o que havia acontecido para que as pessoas tivessem se reunido daquela forma naquele dia. Ele se apresentou como “Branco” e me informou que essa mobilização já estava acontecendo a cerca de uma semana. Resumidamente, o problema era o descaso que a população da ilha sofria por parte da prefeitura. Esse rapaz conhecia alguns boatos que existem lá e me contou. Reproduzirei aqui não apenas os que ele me contou, mas o de todas as pessoas que entrevistei, para ilustrar algumas razões que fizeram aquela população se revoltar, mas afirmo que não conheço a veracidade do assunto.
Branco me disse que, já há algum tempo, a Petrobrás já havia doado um montante de R$ 4 mi para a construção de uma contenção em toda a extensão de Praia Grande, mas que esse dinheiro nunca havia sido desfrutado pelos moradores. Revelou também, que dentro da escola onde estava acontecendo os protestos, trabalhava muita gente desqualificada , uma vez que lá o sistema de indicação valia mais do que o currículo. E ainda, que a ilha estava menos segura, pois em algum momento, num passado recente, uma grande quantidade de drogas ilícitas chegaram nela, fazendo com que os moradores precisassem fazer sua própria segurança. Contou que, assim como ele, muitos filhos da ilha se sentiam incomodados com a grande quantidade de pessoas que iam lá apenas para turismo, pois assim era difícil saber onde e como agir, já que a condição de normalidade era que todos se conhecessem, independente da localidade. Disse também que não havia médicos na ilha e que muita gente ao adoecer precisava se tratar com curandeiros. Além disso, a alimentação era precária, fazendo com que muitos precisassem caçar, pescar ou plantar. Muitos usavam também fossas negras como forma principal de descarte sanitário, comprometendo a qualidade do solo e oferecendo inúmeros riscos à saúde.
Queria ter conversado mais com ele, mas não tive oportunidade já que meu tempo estava acabando e eu devia voltar para perto do grupo. Fiquei pensando muito nas coisas que me contou e fiquei entristecido, já que aquele lugar parecia, nas primeiras visitas, perfeito. Foi nesse momento, enquanto retornava para o interior da escola, que decidi mudar o foco de minha caminhada naquela última visita. Decidi que recolheria histórias e narrativas das pessoas daquele lugar ao longo da caminhada.
Quando finalmente cheguei perto do grupo, já estavam dividindo novamente os subgrupos. Desta vez faríamos diferente: andaríamos num único grande grupo e este seria dividido em subgrupos, recolhendo histórias e observando aspectos que interessariam ao tema do subgrupo.
Assim, mais uma vez, meu grupo ficou para trás, mas desta vez, acidentalmente. Fomos parando para conversar com diversas pessoas ao longo do caminho. Muitas delas não se sentiam confortáveis ou mostravam desinteresse em falar. Assim, seguimos andando em nosso próprio ritmo, observando as pessoas e imaginando como e com quais perguntas as abordaríamos.
Foi curioso perceber que a rádio que escutavam lá não era a de Salvador, mas a de Candeias, que é uma cidade vizinha. Isso é de uma importância muito grande, uma vez que a rádio é um dos meios de se fazer uma população se sentir parte de um determinado território. Quando perguntei para uma senhora que estava sentada à porta, abrindo alguns mariscos, disse que não se importava com que rádio ouviam, nem que se sentiam parte de Salvador nem de Candeias. Deduzi que eles vivem numa espécie de ostracismo político, sem ser atendidos por nenhuma das prefeituras. O que considerei muito injusto, já que o voto daquelas pessoas é requerido quando tem eleição.
Quando paramos para entrevistar outro senhor que estava sentado com mais dois jovens percebi que a comunicação não seria tão fácil assim. Tentamos, sem sucesso, estabelecer um diálogo e assimilar algo que pudesse servir para o projeto, mas foi em vão. Enquanto fazíamos isso, o restante do subgrupo seguiu em frente, e ficamos apenas três. Cada um possuía um foco diferente dentro das narrativas. O bom foi que fizemos companhia um ao outro. Concordamos que apesar daquelas pessoas não se mostrarem insatisfeitas com nossa presença, também não se sentiam animadas, de modo que não havia interesse em estabelecer algum diálogo.
Passamos por uma dupla de mulheres que se mostraram animadas em responder algumas perguntas. Na verdade, essa animação vinha da própria insatisfação de ser obrigadas a caminhar uma grande distância para conseguir o remédio que precisavam. Foi então que começou a enxurrada de reclamações que tinham para fazer da ilha.
Falaram sobre a precariedade da saúde e da falta de médicos na ilha, afirmando que todos os problemas relacionados deviam ser tratados em Salvador, e as emergências eram tratadas por pessoas que entendiam de chás e ervas; sobre a precariedade da mobilidade, já que qualquer atividade deveria ser feita a pé ou barco, mas que quando chovia era difícil fazer qualquer uma das duas; reclamaram sobre a ausência de segurança, que a noite também se sentiam menos confortáveis em sair de casa.
Um parente delas chegou e participou da entrevista. O curioso foi que ele já chegou falando que tinha muita coisa para reclamar, sendo que não havia ouvido a conversa anterior e nem mesmo tínhamos comentado de forma alguma sobre aspectos negativos da ilha. Nossas perguntas buscavam aspectos positivos e negativos, mas sempre descambavam para os problemas existentes lá.
Ele começou a falar sobre as mudanças que a ilha sofreu nos últimos anos. Afirmou sobre a existência de drogas e pessoas estranhas à ilha; sobre a dificuldade em conseguir alimentação, e que por muitas vezes sentia medo de consumir alimentos devido à falta de saneamento e tratamento de esgoto; falou sobre a falta de representação do governo; manifestou que a infraestrutura da ilha deixa muito a desejar; falou expressou ainda sobre uma antiga escola que foi abandonada e que agora era um “elefante branco”, sem nenhuma função, sendo que poderia se tornar, por exemplo, um centro cultural ou posto de atendimento médico.
As reclamações aumentaram quando a dupla de mulheres decidiu se juntar ao rapaz, no momento que ele falou sobre o sentimento de abandono por Salvador, quando, a exemplo do período de carnaval, que é prometido para toda a cidade, a ilha não tem uma atração sequer; Revelaram sobre preços de alimentos inflacionados, forçando as pessoas a terem um cardápio predominantemente oriundo da pesca, o que também apresentava um perigo. Narraram ainda sobre despejos de dejetos no mar pelas grandes empresas no polo petroquímico e sobre a escalada ascendente do turismo na região.
Quando lhes perguntei sobre aspectos positivos, lembraram basicamente de um: é um lugar tranquilo e com paz. Era um bom lugar para viver devido a este fato, mas quando perguntei por outro não souberam responder. Assim, nos despedimos e seguimos andando.
Notamos que o horário estava muito avançado e que havíamos ficado muito para trás, de modo que decidimos não fazer muito mais perguntas e tentaríamos acelerar mais a passada. Buscamos conversar com outro senhor de idade avançada para tentar descobrir como era a ilha num passado mais distante, mas ele só soube afirmar que era muito feliz em viver lá e não queria mudar nunca. Parecia genuinamente satisfeito com todas as coisas.
Quando uma colega parou parar fotografar um gato, alguns dos moradores viram e foram muito simpáticos, nos chamaram e fizeram questão de mostrar um que possuíam. Ele era lindo: cinza e preto, muito peludo e tão grande que parecia uma almofada. Fugiu de nós rapidamente. Observei que estavam fazendo objetos de palha com grande agilidade. Ficamos conversando um pouco com aqueles moradores que também pareciam muito felizes em morar na ilha, sem reclamações. Contaram uma história não muito comum, dando a entender que o lugar era seguro para eles: um deles tinha a mania de beber durante a noite e correr pelado, sem roupas, pela comunidade na madrugada. Ficaríamos conversando por mais tempo, mas tínhamos que chegar no ponto de encontro com o restante do grupo: a praia das Neves.
Esse lugar prometia uma das paisagens mais belas de toda a ilha. É, atualmente, o destino turístico mais procurado. Decidimos não entrevistar mais ninguém para podermos chegar no ponto combinado pelo menos para não atrasar a saída do barco. Não considero suficientes as histórias que recolhi, mas não tínhamos mais tempo. Seguimos andando.
Passamos por locais de difícil acesso, e outros que só foi possível atravessar devido à maré baixa. Havia locais onde o lixo era despejado para ser recolhido à barco, especificamente por canoas. Notei que haviam pessoas indo e voltando, o que me fez supor que aquele caminho era rotineiro para a maioria delas.
No caminho, um cachorro da rua começou a nos seguir e tentamos dar um nome a ele. Sugeri “sarnento”, mas os outros dois não gostaram da ideia. Assim, fomos andando com aquele cachorro nos seguindo e fomos conversando, rindo e jogando conversa fora. O sol a pino nos fez sentir vontade de tirar a blusa. A rua estava vazia e não faria mal a ninguém. Então, assim seguimos: dois de nós sem blusa, um completamente vestido, jogando conversa fora.
Um homem a cavalo nos ultrapassou e manteve uma certa proximidade. Sugeriu que guardássemos a câmera pois, podíamos ser assaltados. Agradecemos a sugestão e a guardamos. De algum modo, me senti satisfeito dele continuar mantendo proximidade. Descemos uma ladeira e havíamos chegado numa praia. Logo, notei a presença de parte do grupo, o que nos deixou mais seguro e menos preocupados com o horário. Estávamos animados e deixamos nossas coisas na areia, e corremos para a água. Quando finalmente estávamos imersos, o rapaz do cavalo sinalizou para nós. Quando sai da água ele recomendou que não deixássemos nossas coisas ali, sem ninguém por perto. Enquanto conversava com ele, os outros dois que estavam na água se aproximaram de nós e o clima já não mais permitia diversão. Decidimos continuar o caminho e chegar à Neves, e seguimos o senhor.
A paisagem mudou de modo muito perceptível. O ambiente era lindo. Havia árvores com as raízes submersas, a água numa coloração esverdeada e as casas arrumadinhas e bem construídas. Tudo muito diferente dos locais por onde passamos andando. Encontramos o restante do grupo e fomos andando mais afastados da mesma forma. Havíamos nos relacionado de uma forma que, para mim, era mais satisfatório estar entre eles dois do que com todo o grupo. Assim, seguimos o pequeno pedaço que faltava para chegar em Neves.
Lembro de ter feito a seguinte pergunta: “Já pensaram se aqui for mais bonito que Neves? Ficarei muito insatisfeito se chegar lá e perceber que troquei a beleza daqui por lá”. E isso aconteceu.
Ao chegarmos em Neves, percebi que considerei muito mais bonito o caminho que o destino propriamente dito. Lá era bonito, isso é inegável, mas tinha colocado muita expectativa sobre o lugar, assim como meus colegas haviam sugerido quando fiz aquele comentário. De qualquer forma, aproveitei a praia e mergulhei com todos. Tiramos algumas fotos, boiamos. Uma colega passou areia do mar no rosto, para diversão de todos. Ficamos aproveitando a paisagem, o mar, a presença um do outro. Dei-me conta de que mais uma vez havia esquecido a aula da noite e, consequentemente, a prova.
Então, depois de algum tempo voltamos para o barco. Todos pareciam um pouco tristes com isso, ou talvez fosse apenas eu, entristecido, fazendo uma leitura errônea de meus colegas. Havia me afastado de meu subgrupo e fui conversando com outra colega sobre a prova.
Ao chegarmos no barco as pessoas começaram a cantar inúmeras músicas e conversavam alto, interagindo entre elas, diferentemente de todas as outras vezes. Achei aquilo muito divertido, porém mais uma vez fui para a parte inferior e voltei a estudar para a prova. Minha viagem havia terminado.
Hoje, enquanto escrevo, percebo que passei por um processo. As andadas me fizeram muito mais do que apenas um bem físico, como imaginei que ia fazer. Aliás, se fosse esse o objetivo, eu deveria ter continuado com minhas corridas, ou fazendo longas caminhadas.
Elas tiveram uma relevância muito grande. Pude perceber como a caminhada pode ter diversos objetivos e possibilidades, e como nos permite um contato mais próximo com as pessoas. Isso, além da sensibilização a que fui submetido, a qual nunca experimentada dessa forma antes.
O melhor de tudo foi ser retirado de um estado de pressão latente e contínua para vivenciar uma experiência sensorial que não existe no cotidiano. Mergulhar num local onde é permitido viver e ter sensações que esquecemos era tudo o que precisava, dentro dessa dinâmica da vida citadina que conhecemos. Considero que isso também melhoraria as condições e a qualidade das relações sociais que conhecemos.
Enfim, percebo agora que caminhar não era o que bastaria para mim. Isso se faz comumente, de várias formas: como meio de mobilidade, de protesto, de exercício físico, romântico e outras coisas mais. Contudo, uma caminhada como meio de me afixar de volta no presente, me atentando a detalhes e criando mais empatia me fez sentir mais vivo e feliz. Acredito que essas atividades podem ajudar toda uma massa neurótica ou ansiosa a resolver seus problemas, ou ao menos mostrar o caminho para se caminhar.
Concluo então, com base em minha experiência, que para a sociedade neurótica e melancólica, sempre triste e apressada, essas atividades que propõe o retorno à natureza são essenciais. Devemos nos preocupar mais com os pares e agir com mais empatia, além de minimizar a quantidade de estresse e preocupações que assolam a mente de um cidadão em seu cotidiano. Observar os detalhes, se permitir as sensações, muitas vezes esquecidas, que o espaço propõe e se engajar no cuidado com o ambiente e com o próximo. Esse é o resultado da arte de caminhar.