eu o mar a ilha – Susan Rodrigues e Victor Chaves

eu o mar a ilha

 

 

 

 

As ondas são como tecidos cintilantes e suas linhas entrecortam, seguem para todos os lados.
e eu deslizo. e eu corto as ondas e crio mais ondas.
algumas gotas de chuva pingam em nós.
os peixes saltam entre um portal e outro escondidos, com muito mais precisão do que eu penso no motivo que me faz ir até lá.
e eu vou. eu sigo e fico no barco velho. sou navegante querendo ser nadador.
o mar me convida para um mergulho e outro mergulho e eu nadaria como um adolescente afoito para o primeiro beijo.
quero sentir o vigor que esse mergulho que eu não dei me daria. um caldo. me dou.
eu fico e sigo.
-“deve chegar logo”, foi o que me disseram.
talvez a vontade de pular nesse mar seja a ânsia para seguir adiante com essa demorada viagem. ou quero mesmo é sentir
o sabor da água salgada nos meus tecidos mentais. minhas ondas se entrecortam e eu crio caos. era para eu ter pulado,
mas agora é tarde.
estamos mesmo chegando.
eu já posso avistar a igrejinha antiga ao longe, uma faixa de areia branca como neve, os pescadores
mergulhando e voltando abundantes. curioso. parece que ao chegar nas profundezas as pescas se entregam para alimentar
os homens. posso perceber como as nuvens se dispersam e o tempo clareia, talvez isso só na minha cabeça.
mas eu sinto de um jeito tão real que é visível.
subo no píer e sigo a pé. quero sentir.
e caminho pela ilha, vago, vago suavemente. tudo vago. meus passos preenchem a mim mesmo.
um cãozinho sarnento me segue, um homem num cavalo me vigia.
os primeiros passos que eu dou na ilha me levam até um pequeno vilarejo e
imagino que pelo menos um momento bebendo num desses bares fará minha mente flutuar e pairar e descer lentamente até as primeiras gotas no mar.
a cerveja não muito boa me faria sentir o quanto ela não precisaria estar gelada para congelar o tempo.
eu peço uma. e nada congela, é líquido. presto atenção na fluidez. meus passos mentais me trouxeram até o mar.
mas fico bebendo enquanto o cãozinho me olha pedindo um nome.
-“Lingudo.” alguém se intromete. mas eu não pensaria num nome melhor. ele tem a lÍngua grande e pareceria óbvio se
o nome que eu pensei não fosse meramente cãozinho sarnento.
Lingudo é um bom nome.
agradeço, levanto, Lingudo levanta a cabeça e derramo um pouco de cerveja no chão. sinto o vento tocar meu rosto, balançar meus cachos que fazem carinho na minha testa. e parto.
“Aqui dentro da mata tem uma boa trilha”. foi o que me disseram.
e eu vou pra mata.
os sons no meio da floresta de arbustos, samambaias e orquídeas são minuciosos. é silêncio.
as minhas ondas mentais se embaraçam. se conectam com as novas possibilidades que me surgem na relva.
mistura de emocções.
me conecto à natureza.
piso em lama. muita lama. muita lama.
-“massagem nos pés”, uma criança por perto comentou olhando os meus passos em falso. mas eu entendi. a lama era mesmo macia. a massagem nos pés me leva de um lugar desconfortável para uma nuvem
leve, densa e reconfortante.
e adiante eu sigo. entre rizoides e filoides os meus pensamentos vão sendo ilustrados.
e eu ando mais. saio da mata e chego até uma cidadezinha.
as massagens deixaram os meus pés enlameados e minha cabeça a flutuar.
atravesso a cidade e vejo Lingudo e um homem num cavalo que olha para um cachorro sarnento e um homem que olha diretamente
para ele e para o cavalo que olha para um cachorro que olha para mim.
-“eu olho por você. estou indo pra aquele lado. posso te guiar”. o homem me diz como se eu precisasse de um guia para
andar perdido pela ilha. eu aceito.
somos quatro. duas pessoas. um cavalo. e Lingudo.
caminhamos juntos num cenário simples de uma cidade de interior no litoral no meio de uma ilha. no meio do mar.
atravessamos a cidadela entre passos lentos e atentos. rápidos e atentos. atentos. lentos. parado.
as ondas do mar são como um sorriso de canto de boca. os brilhos da luz do sol no céu que agora está aberto tocam na água.
tocam em mim.
-“pode seguir. obrigado.”, eu digo. eu quero ficar aqui. eu sou caminhante querendo ser nadador.
serei. sereia.
canto. um encanto no mar. conto meu encanto no canto do mar. um sorriso de canto a me encantar. encontro.

entro no mar…

danço. eu me solto. eu pulo. sorrio. eu rio.
a areia nos pés foram texturizadas para encaixar essa sensação na pele e
deito meu corpo no mar. sou adolescente no primeiro beijo. afoito.
nado. estou nadando como nunca. nado como quem nunca soube nadar. eu só me entrego e nado. sou nadador.
respiro.
ondas leves me tocam e suavemente vão desfazendo os meus emaranhados mentais. minha bagunça vai dando espaço às sensacções de paz.
meu corpo começa a ser diluído na imensidão azul. eu estou totalmente submerso. inspiro. respiro.
metamorfose.
“As Mudanças Precisam Acontecer. Deixa Acontecer. Muda.”
e já não há emaranhado, nem bagunça, estou leve. sou leve. posso sentir todos os tecidos. os sentidos.
me torno num ser aquático. os meus vestígios são dissolvidos em palavras.
salto entre um portal e outro escondidos no mar.
eu sou nadador. sou peixe.
sou parte da Ilha.

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